Curso pós graduação: Filosofia e Psicanálise - UFES
Disciplina: Freud como Teórico da Modernidade Bloqueada
Professor: Dr.Vlademir Safatler
Aluna: Rejane Mª Barros Gomes
RESUMO
Este artigo discute os desafios pelo qual passa uma criança, vítima de incesto, e que em nenhum momento, encontra na mãe alguma forma de apoio. Pais, em conluio perverso e abusivo, causam danos lesivos à constituição psíquica de sua filha, cuja vida fica destroçada, e isso nos leva a pensar que eles próprios tenham tido seus psiquismos danificados, marcados por vivências impensáveis, revertidas em segredos. Abordaremos também o posicionamento de Freud a esse respeito.
Palavras chave: Violência sexual. Incesto. Família.
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Crianças que estão expostas a situações reais de incesto e abuso sexual, muitas vezes em suas próprias casas, vêem-se profundamente sós, sem possibilidade de simbolizar e transformar essas experiências tão nefastas, cujas marcas serão carregadas pelo resto de suas vidas. Isto se agrava, em muitos casos, por não poderem contar, em seu meio familiar, com suporte e tratamento apropriados, o que lhes acontece, devido ao próprio comprometimento parental.
Neste artigo, apresentam-se primeiramente as consequências das situações de incesto na infância, que não são esquecidas pelo sujeito com o passar do tempo. A seguir, abordam-se questões pertinentes à relação entre a vítima de incesto e sua família, tecendo-se algumas considerações sobre o universo do incesto e sobre a negligência familiar.
As consequências das situações do incesto na infância implicam em fatores traumáticos, internos e externos, em curto, médio e longo prazo, e dependem de uma série de aspectos, tais como a idade da vítima, a recorrência das situações abusivas, a complacência e a conivência familiar, as reações familiares após a revelação, agravadas quando implicam em desmentir a criança, denegação e permanência da situação abusiva, com o silêncio e o conluio familiares, sem contar uma possível falta de compromisso por parte de outros adultos do ambiente da criança, inclusive do sistema escolar e de saúde. Membros da família podem conhecer a situação e preferir se calar para "não separar a família".
No que diz respeito aos fatores traumáticos internos, existe uma diferença significativa quando a criança encontra na mãe uma figura protetora e quando não encontra, e ela é desmentida e permanece exposta às situações abusivas. A violência à qual ela é submetida tem, então, duas faces: a do abuso sexual em si e a do abuso moral, pela denegação materna. Isto aumenta a confusão da criança quanto às percepções, às emoções e ao entendimento no que diz respeito a si própria e ao meio circundante, sobretudo por sua incapacidade de gerenciar, na idade em que se encontra, e sozinha, suas vivências, que ultrapassam sua capacidade de elaboração e permanecem como fonte de angústia. A vivência traumática sobrevém em um período de construção psíquica e de grande vulnerabilidade. A imagem que a criança tem de si mesma fica distorcida, assim como sua visão de mundo e a compreensão de suas capacidades afetivas, ainda mais por ela estar em uma família cuja comunicação se apresenta particularmente comprometida, calcada na dupla mensagem e no duplo vínculo.
O desenvolvimento da sexualidade infantil vê-se paralisado ou bruscamente interrompido por causa da confrontação precoce da criança com a sexualidade do adulto, diferente e impressionante, o que interfere com sua vida de fantasia e se impõe à vida da criança sem que ela tenha escolha.
A criança se vê traída quanto à confiança que podia ter nos adultos cuidadores, e invadida por uma série de sensações de mal-estar físico, como estar suja, deformada, ser desprezível, não ter valor, não ser mais como as outras. A auto-estima fica rebaixada e é comum a criança se apresentar irritadiça, agressiva e propensa a atuações, tais como fugas, comportamentos violentos com outras crianças, inclusive com a possibilidade de submetê-las a situações semelhantes às que se viu submetida. São comuns as vivências depressivas, o bloqueio ou queda no rendimento escolar, a hesitação de contato, os comportamentos regressivos, distúrbios da alimentação e do sono, pesadelos, episódios de enurese, crises de choro e as somatizações (dores abdominais, de cabeça, tremores, paralisações). Pode ocorrer, ainda, o uso de drogas.
A exposição precoce a situações sexuais, quando em um estado de despreparo, pode levar a criança a atitudes exageradamente sedutoras, masturbação compulsiva, brincadeiras repetidas de conotação sexual e comportamentos francamente desadaptados, como a utilização da sexualidade para fins manipulativos ou de ganhos (prostituição).
Os fatores traumáticos externos estão ligados às repercussões familiares e sociais da situação de incesto. Envolvem a solidão imposta à criança pelo lugar que ela ocupa na família, o silêncio imposto pelas ameaças mais ou menos veladas que lhe são feitas ou por sua desmoralização devido ao desmentido, as intervenções sociais que expõem a sua intimidade e que nem sempre se mostram as mais apropriadas, a convivência forçada com o abusador ou o possível deslocamento da vida familiar.
A mulher traumatizada por ter sido vítima de incesto na infância terá que se confrontar, em certos momentos de sua vida - e devido ao próprio ciclo vital - com situações que poderão se apresentar como particularmente estressantes. Estas dizem respeito à iniciação e às experiências sexuais, à constituição da própria família, particularmente com o nascimento de filhos, ou de um em particular, devido à reedição da configuração edípica. Invertem-se, então, os papéis, com a passagem do lugar de filha para o de mãe, o que favorece que conflitos sejam atualizados.
Os mecanismos de defesa e de reconstrução da personalidade das antigas vítimas podem se apresentar insuficientes, de forma circunstancial ou crônica, de modo que podem acontecer todas as manifestações de ordem psiquiátrica.
A vítima de incesto e sua família
O incesto diz respeito, essencialmente, a uma interdição social e à transgressão de uma lei nunca enunciada.
De acordo com a teoria freudiana, a criança só tomaria conhecimento da interdição do incesto - presente em toda sociedade humana, constituindo-se em lei universal - em torno dos seis anos de idade. Contudo, o que é certo é que a criança só experienciará o sentimento de ter transgredido uma lei se ela possuir a noção de que essa lei existe. Isto indica que os efeitos psicológicos podem ser muito diferentes, dependendo da idade em que a experiência incestuosa se dê e da forma como o tabu do incesto é vivenciado no meio familiar.
PERSPECTIVA PSICANALÍTICA
Na análise de Freud, o tabu do incesto e suas implicações na vida psíquica do indivíduo enraízam-se na relação da criança com o seio materno. A leitura de Lacan de Freud diz que a criança, depois do complexo de Édipo, passa do mundo imaginário, em que se encontra, auto-centrada, para passar ao mundo simbólico, o da cultura, determinado pela Lei, simbolizada pelo pai. A aceitação do relacionamento do pai com a mãe, necessariamente castrador, determina a inserção da criança no mundo social.
O traço deixado constantemente pela prática incestuosa é o vazio da história, pela impossibilidade de memorização da infância, e mesmo da puberdade, pois não é objeto de nenhum fato memorizável e, em seu entender, as vítimas sabem apenas o que lhes foi contado de sua história, sendo que muitos fatos são omitidos. Mas também demonstra que as vítimas lembram-se muito bem de suas vivências, apenas são extremamente cautelosas em abordá-las, demorando para revelá-las, talvez pelos sucessivos desmentidos aos quais se viram sujeitadas ao longo de suas vidas, ou pela necessidade de confirmar um vínculo de confiança. Além disso, trata-se de vivências que envolvem muita violência, sensações físicas diversas, sentimentos intensos de vergonha, de humilhação e de menosvalia, além de muito ódio, para os quais as palavras parecem não ser suficientes.
NEGLIGÊNCIA FAMILIAR: O MAIS COMUM NOS CASOS INCESTUOSOS
Desleixo, descuido, incúria, desatenção, menoscabo, desprezo, preguiça, indolência: estes são os significados da palavra negligência (Ferreira, 1985).
Não se encontrou dados estatísticos a respeito da situação de negligência infantil com relação ao incesto no Brasil. Este é um trabalho ainda a ser feito.
A negligência pode passar despercebida e, em família, diz respeito ao que os pais não fazem e deveriam fazer. A negligência familiar pode ser física, psicológica e/ou educacional, e diz respeito ao fracasso permanente de um pai/uma mãe, ou ainda de um substituto, de prover as necessidades básicas a um menor de 18 anos, que envolvem alimentação, cuidados corporais, higiene, vestuário, abrigo, cuidados médicos e odontológicos, oportunidades educacionais, proteção e acompanhamento.
Negligência e as mais variadas formas de abuso infantil freqüentemente ocorrem no próprio meio familiar, porém o impacto que provocam não se restringe aí, uma vez que a sociedade como um todo paga um preço pela criança negligenciada e abusada incestuosamente, implicando em custos diretos e indiretos.
SIGMUND FREUD E SEU POSICIONAMENTO COM RELAÇÃO AO INCESTO
Freud, ao realizar o estudo sobre a proibição ao incesto faz uma análise da Psicologia dos Povos Primitivos. Ele faz uma conexão entre Cultura e Psicanálise, rejeitando um distanciamento entre ambas.
Freud diz que a proibição do incesto está determinada pela cultura e pela vida psíquica e dessa forma analisa a vida de “selvagens” e “semiselvagens” que faz parte também do desenvolvimento humano.
Freud pesquisa os povos aborígines australianos que são povos que impõem a mais rigorosa interdição às relações sexuais incestuosas. Suas regras e normas se estabeleciam através do sistema totêmico, que divide sua “sociedade” em clãs, e cada clã tem seu totem. Este totem pode ser um animal comestível, ora inofensivo, ora perigoso, temido e, mais raramente pode vir a ser uma planta ou uma força natural como a chuva ou a água que se acham em relação particular com o grupo. O totem é em particular um antepassado do grupo, e em segundo lugar seu espírito protetor, o seu benfeitor.
Os grupos que estão submetidos ao mesmo totem devem cumprir a sagrada obrigação e quem não o cumpre deve ser castigado por não respeitar a ética do grupo, tornando assim o totem uma regra mais importante que os próprios laços sanguíneos.
Segundo Freud (1914), o totem é uma Lei que estabelece que os membros de um único totem não devem manter relação sexual entre si. O grande foco de análise de Freud ao sistema totêmico está voltado para a observação analítica de como o homem constrói suas proibições que se universalizam nos povos.
A proibição totêmica não é automática, ela é vigiada pela tribo toda, porque aquele que viola as leis é um perigo ameaçador a toda a tribo. Este perigo é o que conhecemos por imoral do ponto de vista ético. O totem é um hereditário e não sofre alterações com o matrimônio, portanto, os filhos são do mesmo totem que a mãe e das irmãs. O totem é a família primitiva e estabelece relações de parentesco de sangue e de parentesco hereditário.
As designações de parentesco não se referem a relações entre dois indivíduos, se não entre um indivíduo e seu grupo. A exogamia totêmica, portanto, é a proibição das relações sexuais entre membros do mesmo clã e constitui-se num meio mais eficaz para impedir o incesto num grupo.
Partindo desta análise, Freud defende a tese de que os “selvagens” são mais escrupulosos nesta questão que nós. É possível para ele que isto seja dado pelo fato dos selvagens se acharem mais sujeitos às tentações e precisem, portanto, de uma proteção mais eficaz.
Para a Psicanálise, o primeiro objeto sobre o qual se faz a eleição sexual do jovem é de natureza incestuosa condenável e está representado pela mãe e pela irmã. O caminho que o sujeito constrói na sua vida avança na busca de subtrair a traição do incesto. Para dar conta dessas proibições, o homem, no seu desenvolvimento histórico cultural cria tabus que, ao mesmo tempo expressam o que é sagrado e consagrado e o que é proibido.
Para Freud, determinados tabus parecem ser racionais, pois tendem a impor privações, e ainda se faz necessário entender que os deuses e os demônios temidos pelo homem são criações das forças psíquicas do mesmo. O homem cria para si mesmo proibições-tabus individuais e que as observa tão rigorosamente como o selvagem às restrições de sua tribo ou de sua organização social.
Os tabus são proibições antiqüíssimas impostas desde o exterior a uma geração de homens por culturas e herança psíquica. As proibições tabus mais antigas e importantes aparecem nas leis fundamentais do totemismo. Freud tem uma hipótese de que estes devem ser os desejos e os prazeres mais antigos do homem e o perigo surge quando sentimos os desejos inconscientes como impulsos conscientes.
A consciência-tabu é a forma mais antiga de consciência moral e as razões das percepções que são desconhecidas são características angustiosas da consciência. As duas coisas contidas no inconsciente resultam numa luta que tem como conseqüência a construção de uma moral. O tabu, em si, não é uma neurose mas é uma formação social.
Deste modo Freud ressalta que há uma relação indiscutível entre a proibição do incesto, o totem e o tabu e as neuroses, estabelecendo as devidas distinções, contudo, reafirmando a relação entre os mesmos no processo de desenvolvimento humano.
REFERÊNCIAS
Ferreira, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
Freud, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud- Totem e Tabu e Outros Trabalhos. v. XIII. Rio de Janeiro : Imago Editora.1996, p. 21 e seg.
Freud, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud- Totem e Tabu e Outros Trabalhos. v. XIII. Rio de Janeiro : Imago Editora.1996, p. 311-331.
Dorsh e outros. Dicionário de Psicologia. Rio de Janeiro: Vozes. 1997, p.240.
Carneiro, M.I.N.E. (2005).Um crime parental: possíveis desdobramentos de abusos sexuais em filhos. Revista Brasileira de Psicanálise,39 (2),135-142.